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sábado, 25 de maio de 2013

Vovó Lelina


    Da soleira da porta, via um pequeno feixe de luz que, gradativamente, parecia se apagar. Dona Lomelina, todas as noitas, acendia uma vela para Santa Clara e a colocava sob o velho mogno de seu quarto, em cima de um pires, herança de família. Sempre estranhei o inusitado hábito de Vovó Lelina (era como a chamávamos no orfanato), embora nunca tivera coragem de lhe perguntar. Apenas admirava a devoção que aquela senhorinha, já muito velha, tinha; Dona Lomelina mal conseguia caminhar por si só e, por isso, na maioria das vezes, vi- a com uma bengala.
    Grande parte das crianças do orfanato tinha medo da bengala de Vovó Lelina. Era um enorme cajado, um pouco menor que a própria senhora, que fazia um barulho um tanto estranho. Nunca soubera o que ela fazia para que o objeto fizesse tanto barulho, mas eu e meus amigos achávamos, realmente, que a bengala tinha vida. Por ser um tanto avantajada, Vovó exercia força sobre a bengala, e, mesmo grande, o objeto reclamava de dores, produzindo aquele barulho irritante. Pareciam os gritos dos porcos que o Senhor Avelino, irmão de Vovó Lelina, matava, todos os finais-de-semana. Talvez a bengala tivesse espírito de porco, não sei. A bengala metia medo em todos os meninos, mas nada me chamava mais a atenção do que o fato de Vovó acender sua velinha habitual.
    Certo dia, uma gripe feia atacou-me de jeito. A dor dilatava os meus ossos; se eu não me contivesse, gritaria tão alto quanto a bengala de Vovó, ou até mais. A febre parecia me corroer por dentro. Quente, muito quente. Senti meu corpo ferver, rodeado por uma poça de suor.
    Quando não mais aguentei, apesar de estar no dormitório, gritei fervorosamente por Vovó. Logo vi aquela senhora adentrar o dormitório, com sua camisola negra, bem diferente do que costumava ver. Ela ergueu meu corpo e sentiu minha testa com suas mãos. Aquelas mãos, apesar de enrugadas, eram as mais macias que encostaram em mim. Percebi, mesmo atordoado, que ela não estava com a bengala. Chameia-a pelo nome de minha mãe uma, duas, três vezes, quando escutei, inusitadamente, mil porcos que gritavam sem parar. Vovó Lelina batia com a bengala no chão, nervosa, em meio a uma oração que não fazia sentido para mim. Dos porcos fez-se o silêncio e, sem saber como, adormeci.
    Acordei e ainda era noite. O tempo parecia não ter passado, um tanto estranho, mas parecia. Voltei a olhar as camas das outras crianças e percebi que ninguém lá estava, deixaram-me sozinho, provavelmente para que não pegassem a mesma doença que ali me deixara deitado. Os lençóis pareciam secos, talvez tivessem sido trocados, e pude ver, pelas três grandes janelas do dormitório, que já começava a amanhecer. De repente, vi Vovó Lelina entrar, vestida com um manto preto muito, muito estranho. Suas mãos não pareciam enrugadas como antes; agora estavam lisas, perfeitamente lisas, como se Vovó tivesse rejuvenescido.
    De minha posição, na extremidade esquerda do quarto, próximo a porta que ligava aos lavabos, uma pequena vela, como a que toda noite Vovó acendia, permanecia intacta, sem vestígios de desgaste. Quando olhei nitidamente para o rosto da mulher que me acariciava, pude perceber que não era Vovó Lelina, mas o rosto de uma jovem que não me era estranha.
    Os porcos novamente começaram a gritar, e, repentinamente, lembrei-me de uma imagem que Dona Lomelina carregava consigo e que costumava mostrar a todas as crianças. A mulher que ali estava era Santa Clara. Fiquei com medo, fechei meus olhos e pedi, em oração, que não acontecesse nada de mal comigo. Respirei.
    Quando voltei a abrir os olhos, Vovó Lelina estava acariciando meu rosto. Todas as crianças dormiam em suas camas, e não mais via a vela acesa, nem mesmo a imagem da estranha mulher estava diante de mim. Depois daquele dia, não sei o porquê, a bengala de Dona Lomelina não fez barulho algum. E, quanto às velas que a gentil senhora acendia, sequer quis saber porque o eram, pois sentia a mágica que daquela fé emanava.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Do claro ao escuro

         Assobiariam os ventos que uma mulher transgredira à inferioridade natural se eu, antes de sucumbir à morte, descobrisse como sair deste buraco; é gigantesco, e, ao mesmo tempo, tão pequeno. Faz muito frio. Neste inóspito lugar, a terra envolve-me, momentaneamente, em um aquecer que logo se despe, ao soprar dos ventos que penetram por entre as beiradas da enorme pedra que me prende. Ergo o braço, mais um vez, tentando empurrar o obstáculo rochoso. Impossível.
Rafael descobrira, ainda no verão, minha relação com Leonardo. Fora o fim de nosso sonho e o início de meu pesadelo: recebia, incessantemente, ligações; minha casa, a certa vez, fora depredada e mal sabia eu que o autor daquilo tudo era ninguém menos que meu ex-marido. De nada adiantou as denúncias que fiz porque, depois de dias a pensar que as ameaças tiveram fim, aquele louco entrou em minha casa, atou meus braços e minha perna e, abruptamente, estuprou-me. Não pude reter o nojo que senti ao ser tocada por aquele homem que dissera me amar e, naquele dia, machucava-me. De minha boca saíram coágulos de sangue envolvidos por restos alimentares que escorriam, devagar, pelo meio queixo, passando por meu peito, até chegar ao chão. Irritado, Rafael proferiu três socos em meu rosto e, já não suportando, desmaiei.
Fui do claro ao escuro. Não vejo nada há dias. Minha sensação é de que tiraram-me os olhos, porque não faço idéia de onde estou, somente sinto os objetos com minhas mãos, já calosas, que cheiram a uma mistura de terra e sangue. Há pouco, ouvi um barulho atordoante; parecia ter vindo de outro lugar, talvez de fora, não faço idéia. Chove, pois já posso sentir a terra molhada grudar em minha pele, por entre os dedos dos pés. Sinto-me Antígona, relegada a morrer pela única fraqueza que me possui: a de ser mulher.


sábado, 2 de junho de 2012

Sobre fios brancos...

"Ela parece uma árvore frutífera - uma cerejeira em flor", disse ele, olhando para uma mulher ainda moça com um belo cabelo branco. Era uma imagem de tipo primoroso, pensou Ruth Anning - sim, um primor porém ela não tinha certeza de estar gostando desse homem distinto, melancólico, com seus gestos; e é curioso, pensou ela, como os nossos sentimentos são influenciados. Não gostava dele, mas reconhecia ter gostado da comparação da mulher com a cerejeira que foi feita por ele. Fibras dela, sem rumo fixo, em flutuação caprichosa, como tentáculos de uma anêmona-do-mar, ora vibravam, ora de repuxavam, e o seu cérebro, a quilômetros dali, frio e distante, suspenso no ar, recebia mensagens que processaria a tempo de, quando as pessoas pessoas falassem de Roderick Serle (e ele era uma figura e tanto), ela poder dizer sem hesitar: "Gosto dele", ou "Não gosto dele", e assim ter definida sua opinião para sempre. Uma idéia estranha; lançando uma luz insólita sobre a composição da sociabilidade humana."

WOOLF, Virginia. Juntos e à parte.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Adeus

Sob as águas da vida
um Sol que partia,
que se punha ao olhar
de quem o amava.
E se ocultava,
da forma mais pura,
dando vez à lua
sem o adeus da despedida.

terça-feira, 29 de maio de 2012

A descoberta do mundo - Clarice Lispector


O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida. E eu queria poder usar delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva.
Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em aprender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce , estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo aliás atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. Ou será que eu adivinhava mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesmo, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? Enfeitar-me aos onze anos de idade consistia em lavar o rosto tantas vezes até que a pele esticada brilhasse. Eu me sentia pronta, então. Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos? Acredito que sim. Porque eu sempre soube coisas que nem eu mesma sei que sei.
As minhas colegas de ginásio sabiam de tudo e inclusive contavam anedotas a respeito. Eu não entendia mas fingia compreender para que elas não me desprezassem e à minha ignorância.
Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência.
Até que um dia, já passados os treze anos, como se só então eu me sentisse madura para receber alguma realidade que me chocasse, contei a uma amiga íntima o meu segredo: que eu era ignorante e fingira de sabida. Ela mal acreditou, tão bem eu havia fingido. Mas terminou sentindo minha sinceridade e ela própria encarregou-se ali mesmo na esquina de me esclarecer o mistério da vida. Só que também ela era um amenina e não soube falar de um modo que não ferisse a minha sensibilidade de então. Fiquei paralisada olhando para ela, misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu gaguejava: mas por quê? Mas por quê? O choque foi tão grande – e por uns meses traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca iria me casar.
Embora meses depois esquecesse o juramento e continuasse com meus pequenos namoros.
Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amo. Esse adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa, sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios.
Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continua intacto. Embora eu saiba que de uma planta brotar um flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita.

Versos de uma manhã


Quando eu sorria, querendo que fosse,
sorvia em sonhos dos teus lábios o doce.
Amanhecia em lágrimas choradas para o nada
e clamava, em pensamentos,
poder querer estar contigo, minha amada.

Das minhas desatenções tiraste a raiva
que crescera em flor e,
como mágica.,
desabrochara em amor,

Sei que por vezes choraste
pelos olhos daquele que não te parecia sorrir.
Dele, ganhaste um não.
Deste que vos fala, ganhaste o coração.

quinta-feira, 24 de maio de 2012


Talvez

Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém 
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,

E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...

Pablo Neruda

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“Via-se perfeitamente que estava viva pelo piscar constante dos olhos grandes, pelo peito magro que se levantava e abaixava em respiração talvez difícil. Mas quem sabe se ela não estaria precisando de morrer? Pois há momentos em que a pessoa está precisando de uma pequena mortezinha e sem nem ao menos saber. Quanto a mim,substituo o ato da morte por um seu símbolo. Símbolo este que pode se resumir num profundo beijo mas não na parede áspera e sim boca-a-boca na agonia do prazer que é a morte.”

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