Da
soleira da porta, via um pequeno feixe de luz que, gradativamente, parecia se
apagar. Dona Lomelina, todas as noitas, acendia uma vela para Santa Clara e a
colocava sob o velho mogno de seu quarto, em cima de um pires, herança de
família. Sempre estranhei o inusitado hábito de Vovó Lelina (era como a
chamávamos no orfanato), embora nunca tivera coragem de lhe perguntar. Apenas
admirava a devoção que aquela senhorinha, já muito velha, tinha; Dona Lomelina
mal conseguia caminhar por si só e, por isso, na maioria das vezes, vi- a com
uma bengala.
Grande
parte das crianças do orfanato tinha medo da bengala de Vovó Lelina. Era um
enorme cajado, um pouco menor que a própria senhora, que fazia um barulho um
tanto estranho. Nunca soubera o que ela fazia para que o objeto fizesse tanto
barulho, mas eu e meus amigos achávamos, realmente, que a bengala tinha vida.
Por ser um tanto avantajada, Vovó exercia força sobre a bengala, e, mesmo
grande, o objeto reclamava de dores, produzindo aquele barulho irritante.
Pareciam os gritos dos porcos que o Senhor Avelino, irmão de Vovó Lelina,
matava, todos os finais-de-semana. Talvez a bengala tivesse espírito de porco,
não sei. A bengala metia medo em todos os meninos, mas nada me chamava mais a
atenção do que o fato de Vovó acender sua velinha habitual.
Certo dia, uma gripe feia atacou-me de jeito. A dor dilatava os meus ossos; se eu não
me contivesse, gritaria tão alto quanto a bengala de Vovó, ou até mais. A febre
parecia me corroer por dentro. Quente, muito quente. Senti meu corpo ferver,
rodeado por uma poça de suor.
Quando não mais aguentei, apesar de estar no dormitório, gritei fervorosamente por Vovó. Logo vi aquela senhora adentrar o dormitório, com sua camisola negra, bem diferente do que costumava ver. Ela ergueu meu corpo e sentiu minha testa com suas mãos. Aquelas mãos, apesar de enrugadas, eram as mais macias que encostaram em mim. Percebi, mesmo atordoado, que ela não estava com a bengala. Chameia-a pelo nome de minha mãe uma, duas, três vezes, quando escutei, inusitadamente, mil porcos que gritavam sem parar. Vovó Lelina batia com a bengala no chão, nervosa, em meio a uma oração que não fazia sentido para mim. Dos porcos fez-se o silêncio e, sem saber como, adormeci.
Quando não mais aguentei, apesar de estar no dormitório, gritei fervorosamente por Vovó. Logo vi aquela senhora adentrar o dormitório, com sua camisola negra, bem diferente do que costumava ver. Ela ergueu meu corpo e sentiu minha testa com suas mãos. Aquelas mãos, apesar de enrugadas, eram as mais macias que encostaram em mim. Percebi, mesmo atordoado, que ela não estava com a bengala. Chameia-a pelo nome de minha mãe uma, duas, três vezes, quando escutei, inusitadamente, mil porcos que gritavam sem parar. Vovó Lelina batia com a bengala no chão, nervosa, em meio a uma oração que não fazia sentido para mim. Dos porcos fez-se o silêncio e, sem saber como, adormeci.
Acordei
e ainda era noite. O tempo parecia não ter passado, um tanto estranho, mas parecia.
Voltei a olhar as camas das outras crianças e percebi que ninguém lá estava,
deixaram-me sozinho, provavelmente para que não pegassem a mesma doença que ali
me deixara deitado. Os lençóis pareciam secos, talvez tivessem sido trocados, e
pude ver, pelas três grandes janelas do dormitório, que já começava a
amanhecer. De repente, vi Vovó Lelina entrar, vestida com um manto preto muito,
muito estranho. Suas mãos não pareciam enrugadas como antes; agora estavam
lisas, perfeitamente lisas, como se Vovó tivesse rejuvenescido.
De
minha posição, na extremidade esquerda do quarto, próximo a porta que ligava
aos lavabos, uma pequena vela, como a que toda noite Vovó acendia, permanecia
intacta, sem vestígios de desgaste. Quando olhei nitidamente para o rosto da
mulher que me acariciava, pude perceber que não era Vovó Lelina, mas o rosto de
uma jovem que não me era estranha.
Os
porcos novamente começaram a gritar, e, repentinamente, lembrei-me de uma
imagem que Dona Lomelina carregava consigo e que costumava mostrar a todas as
crianças. A mulher que ali estava era Santa Clara. Fiquei com medo, fechei meus
olhos e pedi, em oração, que não acontecesse nada de mal comigo. Respirei.
Quando
voltei a abrir os olhos, Vovó Lelina estava acariciando meu rosto. Todas as
crianças dormiam em suas camas, e não mais via a vela acesa, nem mesmo a imagem
da estranha mulher estava diante de mim. Depois daquele dia, não sei o porquê,
a bengala de Dona Lomelina não fez barulho algum. E, quanto às velas que a gentil senhora acendia, sequer quis saber porque o eram, pois sentia a mágica que daquela fé emanava.